O Estadão teve acesso à versão final do contrato fechado entre a Belo Sun e o Incra. No documento, consta a cláusula de que a empresa terá de “pagar participação nos resultados ou rendas provenientes da atividade do empreendimento ao Incra na forma determinada em lei”.
O contrato não diz a qual lei se refere e não detalha o porcentual de participação. Procurados pela reportagem, o Incra e a Belo Sun não se manifestaram até a conclusão desta edição.
O especialista Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), vê conflito de interesse no acordo. “Estamos diante da instalação de um profundo conflito de interesses dentro de uma autarquia cuja vocação primordial é promover a função social da propriedade, o que demanda imediata avaliação jurídica”, disse.
A avaliação é de que o ato pode, inclusive, vir a ser alvo de questionamentos legais. “A iniciativa representa uma inversão de valores sobre as funções primordiais do Incra, ferindo os princípios de participação social implícitos em suas diretrizes, e inaugurando um perigoso precedente ao visar lucratividade na concessão de exploração por capital estrangeiro de áreas destinadas ao assentamento agrário.”
Assentamento
Pelo termo firmado com a empresa canadense, o Incra, que é um órgão federal ligado ao Ministério da Agricultura e que tem como missão básica dar andamento à reforma agrária do País, passa a ter participação direta nos resultados de um garimpo industrial, que pretende ser o maior projeto de mineração de ouro no território brasileiro, conforme a Belo Sun.
Como revelou reportagem do Estadão na terça-feira, o Incra firmou contrato com a Belo Sun para reduzir a área de um assentamento criado há 22 anos. O empreendimento da companhia canadense seria instalado poucos quilômetros abaixo da barragem da hidrelétrica de Belo Monte.
No acordo, o Incra concordou em reduzir uma área de 2.428 hectares da região, cortando o território do assentamento Ressaca e da gleba Ituna, onde vivem cerca de 600 famílias. Em troca, o Incra vai receber uma fazenda localizada a mais de 1,5 mil quilômetros de distância dali, no município de Luciara, em Mato Grosso, nas margens do Rio Araguaia. Ontem, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a suspensão do contrato até que o órgão analise a tratativa.
O contrato estipula ainda que a empresa deve recolher o valor de R$ 1,340 milhão ao Incra, cifra apurada pela Diretoria de Desenvolvimento e Consolidação de Projetos de Assentamentos, “em contraprestação pelo uso da área do imóvel pertencente ao Incra”. O contrato não detalha o critério usado para estipular o valor.
Insegurança
Pelo acordo, o Incra passa a permitir a lavra garimpeira em sua área, que antes era ocupada por assentados, retirados do local. Famílias ouvidas pela reportagem não sabem para onde ir. Outros moradores da região estão apreensivos sobre o destino que será dado a seus lotes e os impactos que a produção de ouro possa trazer ao local.
O prazo do contrato de concessão da área é de 20 anos e pode ser prorrogado “desde que haja interesse das partes”. As famílias, que são parte interessada em qualquer projeto de assentamento, não foram ouvidas.
O Estadão já mostrou que a Belo Sun fez aquisições de uma série de lotes da reforma agrária na região, em transações irregulares. Pelo menos 21 terrenos de famílias assentadas na Vila Ressaca, no município de Senador José Porfírio, foram negociados diretamente entre a empresa e os moradores. A reportagem teve acesso a contratos nos quais a empresa desembolsa valores de até R$ 1 milhão e registra os atos em cartório.
Para que um lote da reforma agrária seja vendido por seu morador, a lei impõe uma série de condicionantes, como o fato de o ocupante ter vivido sobre aquela terra pelo prazo mínimo de dez anos e o terreno ter a emissão de seu título definitivo de posse. Ocorre que praticamente nenhum lote da Vila Ressaca tem esse documento, que é liberado pelo Incra. As transações são investigadas pela Polícia Federal.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.