A representação pede que o TCU faça uma “auditoria detalhada na folha de pagamento das Forças Armadas em conjunto com demais sistemas de controle de pessoal nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022”.
A auditoria interna realizada pela CGU revela indícios de irregularidades em pagamentos e ocupações de 2.327 militares e seus pensionistas. A investigação apontou uma série de problemas, como acúmulo de funções simultâneas por militares da ativa e recebimento dobrado de salários e benefícios que extrapolam o teto constitucional.
Foram encontrados 558 casos de ocupação simultânea de cargos militares e civis sem nenhum tipo de amparo legal ou normativo para isso. Deste total, 522 militares estão ocupando postos na administração pública direta e outros 36, em estatais federais. Uma segunda irregularidade encontrada mostra que centenas de casos extrapolam o prazo máximo de atuação paralela dos militares, se consideradas aquelas situações de exceção em que esse trabalho simultâneo é permitido. O levantamento aponta que 930 militares chegam a se enquadrar em casos legais de acúmulo de cargos, mas desrespeitam o limite legal de até dois anos neste tipo de função simultânea, ou seja, eles seguem recebendo salário da administração pública, em desrespeito às leis.
A terceira irregularidade diz respeito a salários pagos. Foram identificados 729 militares e pensionistas de militares com vínculo de agente público federal que receberam acima do teto constitucional, sem sofrerem nenhum tipo de abatimento em seus vencimentos. Em dezembro de 2020, o salário teto no Brasil, baseado no que é recebido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), era de R$ 39.293,32. Como o período analisado pela CGU focou um retrato da situação de dezembro de 2020, o próprio órgão afirma que, se todos os casos levassem à devolução do dinheiro público pago a mais, só naquele mês teriam de ser devolvidos R$ 5,139 milhões aos cofres públicos.
“Diante da gravidade dos fatos, nossa assessoria iniciou um processo de pesquisa dos fatos narrados e constatou que eles fazem parte do Relatório de Avaliação n° 1026174, referente a auditoria interna realizada no exercício de 2021, cuja conclusão é datada do dia 9 de junho de 2022”, afirma a representação encaminhada pelo deputado Elias Vaz. “Os fatos constatados causaram perplexidade, pois, de fato, a CGU detectou irregularidades gravíssimas e indícios reais de lesão ao erário. Ademais, há a possibilidade de que os militares tenham agido de forma deliberada e consciente, fazendo uso de brechas nos controles da folha de pagamento.”
A representação enviada ao TCU alerta ainda sobre “grave falha nos sistemas de controle de pessoal dos servidores civis, militares e empregados das estatais” e afirma que essa fragilidade pode ter sido uma das causas das irregularidades. “A brecha consiste na segregação dos sistemas de controle de pessoal, visto que o Ministério da Defesa mantém um sistema de controle autônomo e desconectado do sistema utilizado pelo Ministério da Economia para gestão dos servidores civis. Para ampliar o problema, as estatais também possuem sistemas autônomos de gestão, especialmente as não dependentes.”
“Diante disso, é necessário que o TCU, com sua expertise e experiência, realize uma auditoria na folha de pagamento do Ministério da Defesa, pois os achados da CGU são graves e podem estar lesionando o erário”, afirma o documento, que é endereçado à presidente do tribunal, ministra Ana Arraes.
Como mostrou o Estadão, as informações apuradas pela CGU não partiram de um simples cruzamento de banco de dados de diferentes ministérios do governo federal. Para chegar ao resultado que aponta indícios graves de irregularidades, os auditores fizeram, conforme consta no documento, um “amplo estudo normativo, em busca de todos os regramentos relacionados ao tema”, para excluir cenários em que o vínculo simultâneo entre o serviço militar e público tenha amparo legal.
Nesta filtragem, foram excluídos, por exemplo, os casos de militares da reserva ou reformados que estejam ocupando cargo público. O resultado também deixa de fora os militares ligados a atividades da área de saúde e que passaram a ocupar um cargo público no mesmo setor da gestão pública. As exceções incluem ainda militares da ativa que estejam no serviço público para necessidades temporárias e dentro do prazo de até dois anos, além dos militares inativos que são contratados para atividades de natureza civil em caráter voluntário. “Vencida essa etapa, foram realizados os cruzamentos de dados com o objetivo de identificar as ocorrências de militares com vínculos civis que apresentavam indícios de irregularidades, ou seja, já eliminados os casos de exceção”, afirma a auditoria.
Além das irregularidades encontradas, a CGU revela a fragilidade da gestão de recursos humanos do governo, que “ocorre de maneira segregada”. Isso ocorre porque o vínculo militar é gerido pelo Ministério da Defesa, que não se submete ao controle da CGU, enquanto os cargos públicos são de responsabilidade da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal, do Ministério da Economia. É esta secretaria que cuida do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (Sipec), alvo central da auditoria.
“Observa-se contexto de dificuldade intrínseca para implementação de controles, seja pela atuação em conjunto de duas unidades gestoras, seja pelo desafio de comunicação eficaz e tempestiva entre tais unidades, seja pelo uso de sistemas estruturantes distintos”, afirma a auditoria. “Caso existisse tal integração, poderia ser facilmente implementado um controle sistêmico e automático para impedir tais casos, ou mesmo notificar os gestores a respeito.”
Questionado sobre o assunto, o Exército afirmou que tem colaborado com a CGU, mas não deu informações sobre correções já feitas. A Aeronáutica e a Marinha foram questionadas sobre o assunto, mas não responderam aos pedidos de esclarecimento. O Ministério da Defesa declarou à reportagem que, dentro da administração central da pasta, identificou dois casos de irregularidades. Um envolvia ocupação simultânea irregular e outro o recebimento de salário acima do limite constitucional. O servidor, que não teve a sua identificação mencionada, “foi notificado a promover o ressarcimento dos valores, o que já vem ocorrendo”. O Ministério da Economia declarou, por meio de nota, que as informações da auditoria “já foram encaminhadas diretamente aos órgãos envolvidos para manifestação e providências que eventualmente se fizerem necessárias”.