O ministro reafirma a sua disposição de seguir em frente e exalta a “relação de respeito” que mantém com Bolsonaro. Como apurou o Estadão/Broadcast, Guedes continua a desempenhar o papel de Dom Quixote do liberalismo em Brasília, mas está se exaurindo no processo. Parece ser mais forte do que ele próprio a determinação de tentar fazer “a coisa certa”, em meio a um grupo de ministros cujas ideias para a economia são mais próximas do nacional-desenvolvimentismo predominante no regime militar e repaginado nos governos do PT.
Nesta entrevista, Guedes fala sobre a sua “frustração” com o ritmo das reformas e a “falta de apoio” para implementar a sua agenda liberal. Fala também sobre o crescimento da economia em 2022, a situação das contas públicas, as privatizações dos Correios e da Eletrobras, a proposta de reduzir o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e o corte de tributos sobre os combustíveis.
O sr. acabou de completar três anos de governo. Há uma percepção de que não conseguiu levar adiante sua agenda liberal. Dizem que as reformas estão paradas, as privatizações não saíram e a abertura não andou. Como o sr. vê essa percepção?
É evidente que as reformas ambiciosas que nós defendemos não estão andando na velocidade em que gostaríamos. Naturalmente, há uma frustração nossa com o ritmo das reformas. Então, em parte, é uma percepção razoável, mas em parte é completamente injusta. Há muita militância e falsas narrativas, por desinformação mesmo e talvez por falhas nossas de comunicação, mas também por desonestidade intelectual. Acho profundamente desonesto ignorar o impacto da pandemia – uma crise sanitária de proporções nunca vistas antes, em que mais de 600 mil pessoas perderam vidas e empresas foram destruídas – na agenda econômica. Todas as narrativas reconhecem que a pandemia foi algo terrível, que efetivamente foi, uma tragédia de dimensões planetárias. Mas, quando a gente fala do seu impacto na economia, as cobranças são como se não houvesse uma guerra e como se, nos três anos em que estamos aqui, dois não tivessem sido voltados à pandemia, que ameaçou desorganizar a economia nacional.
Ao longo de sua gestão, o sr. anunciou diversas medidas que, no fim, acabaram não saindo. Muitos analistas passaram a chamá-lo de “ministro da semana que vem” e coisas do gênero. O que aconteceu? No começo do governo, o sr. falava em “mais Brasil e menos Brasília”? Brasília venceu?
Eu cometi um erro. Sabem qual foi? Dividi com vocês essas metas todas que eu tinha e a oposição a essas mudanças importantes, dentro e fora do governo, rapidamente descredenciava os projetos mais ambiciosos. Os oposicionistas, que sempre foram contra as reformas, ganhavam uma força adicional de gente de dentro do governo. Então, eu achava muito importante que a gente mantivesse não só a equipe motivada, mas o governo inteiro sabendo qual era a meta. Se você não tem uma coalizão parlamentar, e nós não tínhamos quando chegamos, como vai transmitir alguma coisa para a equipe? Você tem de dizer “queremos privatizar estatais”, “queremos fazer uma reforma da Previdência”, “queremos fazer uma reforma administrativa”. Aí, eu percebi que você consegue mais se não compartilhar tanto as metas, porque as narrativas nem sempre são construtivas. Por isso, tenho falado menos.
Faltou apoio político para tocar uma agenda liberal?
Sim. Não tive o apoio que tinha de ter. Eu realmente esperava mais apoio para essa agenda. Agora, vocês acham que tínhamos apoio parlamentar para tocar essa pauta? Depois, com as mudanças no PSL, que era o partido de sustentação do governo, a situação ainda ficou mais complicada. O governo só encontrou eixo parlamentar agora, nos últimos dois anos. Você vê como as reformas andaram num ano de pandemia, em 2021, com a aprovação da autonomia do Banco Central, dos novos marcos regulatórios do gás, do saneamento, das ferrovias e da cabotagem, a Lei de startups, a Lei de Falências, a BR do Mar. Nós entramos com uma plataforma que é o resultado de uma aliança de conservadores e liberais, que funcionou politicamente para a eleição, mas a engrenagem não girou. Essa aliança não conseguiu nem implementar as propostas dos conservadores, porque os liberais têm valores um pouco diferentes, nem as reformas liberais, porque às vezes têm fogo amigo dos conservadores. O establishment é muito forte. Você ganha a eleição com uma plataforma, mas aí há primeiro um desalinhamento dentro dessa aliança e – mais importante – a resiliência do establishment, que protege seu modus vivendi.
O sr. pode dar um exemplo de como essas divergências prejudicaram o andamento da agenda liberal?
Quando o nosso governo chegou, nós dizíamos que o estatismo, o dirigismo e o intervencionismo têm muitas dimensões: eles corromperam a nossa democracia e estagnaram a nossa economia. Daí a defesa das privatizações. Nós achávamos que, depois dos escândalos do mensalão e do petrolão e dos problemas na Caixa, haveria vontade política de reduzir a corrupção sistêmica – e ela só será reduzida quando avançarmos com as privatizações. É evidente que a corrupção foi reduzida, por uma questão moral, por pressão da sociedade e por não haver aparelhamento político na máquina estatal. Agora, olha a dificuldade para fazer a privatização dos Correios, com a qual o presidente se comprometeu, já foi aprovada pela Câmara, mas parou no Senado, que precisa dar esse passo. No caso da Eletrobras, a privatização já foi aprovada na Câmara e no Senado, mas teve uma travazinha no TCU (Tribunal de Contas da União). Eu acredito que vá destravar. O importante é o Brasil não dar passos para trás.
Por que é tão difícil implementar uma agenda liberal no Brasil?
Mesmo que o Brasil tenha constatado a corrupção no sistema político, orgânica, sistêmica, e uma estagnação econômica de três ou quatro décadas, mesmo com o mensalão, o petrolão, é surpreendente que a elite brasileira ainda não tenha compreendido a necessidade de fazer essa transição incompleta, a transformação estrutural do Estado. É surpreendente essa inapetência pelo avanço das reformas liberais. As coisas até vão acontecendo, mas levam tempo demais. O Brasil foi, de crise em crise, aprendendo a importância dessas reformas. Não foi um aprendizado virtuoso. Os liberais ficaram muito tempo fora do governo, o que também é compreensível, porque a direita estava associada aos governos intervencionistas, aos governos militares.
No ano passado, muitos economistas fizeram previsões apocalípticas sobre o déficit fiscal e o crescimento da dívida pública. Mas, no fim, o resultado foi bem melhor do que se previa Como o sr. analisa isso?
Alguns desses economistas, que falavam em “populismo fiscal”, que a gente tinha perdido o rumo e gastado demais – até isso eu ouvi – passaram pelo governo. Eu conheço a história de cada um deles. Eles levaram o País a 5.000% de inflação ao ano e agora dizem que o resultado fiscal foi melhor do que se esperava porque a inflação subiu. Interessante, né? Naquela época, o efeito deveria ter sido o mesmo, mas não foi o que aconteceu. Quando a inflação bate 10% ao ano durante o governo Dilma, o resultado fiscal também deveria ter sido outro. A inflação aumenta as receitas, mas também aumenta as despesas, os salários, as aposentadorias. Então, não foi a inflação que consertou a história. Foi travar a despesa. Isso é básico. Nós travamos os reajustes salariais do funcionalismo por dois anos durante a pandemia. A classe política fez em tempos de guerra o que nunca conseguiu fazer em tempos de paz. Para a saúde, sim, havia recursos, mas para reajuste de salário, não.
Neste ano, com as eleições, há um temor de que o presidente Jair Bolsonaro abra os cofres e aumente os gastos de forma descontrolada, para tentar se fortalecer na disputa. Como o sr. se coloca diante disso?
Sempre houve confiança e respeito entre nós. E neste ano de fervura política espero que exista pelo menos muito respeito entre todos os brasileiros. É necessário haver um reforço da aliança dos liberais com os conservadores, em defesa de programa liberal democrata na economia. Há conservadores em torno do presidente que o aconselham a não empreender as reformas administrativa e tributária por receio de que percam votos, enquanto os liberais insistem que, para manter os votos do centro, dos liberais, é importante que as reformas estruturantes prossigam, pois elas é que garantem o caminho da prosperidade. Mil vezes eu falei para o presidente o seguinte: “O sr. quer dar certo? Vamos fazer a coisa certa. Eu estou aqui para ajudá-lo a fazer a coisa certa. Se o sr. fizer a coisa certa, o sr. será reeleito, o sr. tem chance de ganhar a eleição. Se não fizer, não”. Acredito que, nesta reta final, um maior compromisso com a agenda liberal pode ajudar muito, porque é um governo de reformas.
As previsões para o desempenho da economia neste ano também estão bem pessimistas, de uma queda de 0,5% do PIB (Produto Interno Bruto) a um crescimento de 1% do PIB. O que o sr. pensa sobre isso?
Em 2020, esses mesmos economistas falavam que o PIB iria cair 10%, e ele caiu menos de 4%. Em 2021, quando eu dizia que a recuperação da economia viria em “v”, eles afirmavam que o “v” era “v” de virtual, porque só o ministro estava vendo isso. No fim, a economia cresceu 4,5% e poderia ter crescido 5,5% ou 6%, se não deixássemos os estímulos fiscais e monetários, como outros países estão deixando. Hoje, nós somos o único País que já está de novo onde estava antes da pandemia chegar. Eu disse que isso iria acontecer, mas as pessoas não entenderam direito. Acredito que neste ano a economia vai crescer mais e eles vão errar de novo. As revisões de crescimento lá fora vão ser todas para baixo. A nossa aqui vão ser todas para cima, porque já tiramos estímulo.
O sr. acredita, então, que o desempenho da economia, que muitos analistas veem como um problema para o presidente na campanha pela reeleição, vai ajudá-lo?
Se o governo fizer a coisa certa – e nós estamos fazendo a coisa certa e vamos continuar a fazer -, só pode ajudar. Hoje está muito ruim, não é isso? Vocês acham que a economia vai piorar ou melhorar? Só pode melhorar, né? Passaram um ano falando que iria dar tudo errado, porque o fiscal estava fora de lugar. Aí, fechamos o ano com um pequeno superávit. Agora vai dar errado por quê? “Ah, porque a inflação tá alta”. As previsões são de que inflação vai cair de 10% para 5% neste ano. Com a inflação em queda, os juros vão cair também, porque existe o equilíbrio fiscal.
Em que pé está a proposta de redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializado)?
A ideia é fazer a redução do IPI já. Nós estamos estudando uma redução linear de 25% a 50% o mais rápido possível. O presidente gosta da proposta, o Ciro (Nogueira, ministro-chefe da Casa Civil) adora, e o (Arthur) Lira (presidente da Câmara), também. Eu tinha imaginado usar esse aumento de arrecadação ocorrido no ano passado para financiar a reforma tributária. Isso bancaria a transição do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) para o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), mas perdemos o timing. Então, a ideia é aproveitar o aumento de arrecadação para reduzir as alíquotas, baixar o IPI, para todo mundo, em vez de deixar esse dinheiro solto para virar aumento salarial do funcionalismo nos Estados. A gente ainda está no meio da pandemia e vai dar aumento de salário para o funcionalismo? Não faz sentido.
Entre tantos tributos, por que o sr. escolheu o IPI?
Porque a indústria brasileira está sendo penalizada. A indústria brasileira está sob fogo cerrado, afundando. Nós precisamos reindustrializar o Brasil e o IPI é uma estaca no coração da indústria. Então, a hora é agora porque teve esse aumento de arrecadação. Com a redução do IPI, ajudo a indústria a ficar em pé e a minimizar o impacto do corte de 10% que fizemos nas tarifas do Mercosul. Tenho um pacto com a indústria: enquanto houver um piano nas costas, que são encargos trabalhistas, o excesso de impostos e o juro alto, não vou submetê-la ao massacre da serra elétrica, deixando a chinesada entrar.
Quanto às propostas do Congresso para redução dos preços de combustíveis, qual é a sua avaliação?
A gente tem mais simpatia pela proposta de zerar os tributos do óleo diesel, cujo impacto fiscal deve ser de R$ 17 bilhões ou R$ 18 bilhões ao ano, que seria um mal menor. Se eu ainda reduzir 25% do IPI, seriam mais R$ 20 bi, só que aí R$ 10 bilhões meus e R$ 10 bilhões dos Estados e municípios. A proposta do Senado, que propõe a criação de um fundo para redução de tributos dos combustíveis, do botijão de gás, da energia elétrica e até de passagens de transporte público para idosos, é uma bomba fiscal. Seu custo poderá chegar a mais de R$ 110 bilhões ao ano. Além disso, ela acaba por financiar muita coisa que não é para financiar, como gasolina de avião e lancha de milionário, gasolina de carro de passeio. Há, ainda, outra proposta, na Câmara, com impacto fiscal de pouco mais de R$ 50 bilhões, que tem foco nos combustíveis, até porque o problema do custo da eletricidade já está endereçado nas tarifas sociais, e não inclui benefícios para o transporte público.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.